domingo, 31 de julho de 2011

noites em branco


Levantei-me. O corpo estava pesado e cansado, e, lá fora, escuro e frio. Olhei pela janela à espera de encontrar vestígios de respostas para apagarem o que não me deixava adormecer. As horas que dormira, apesar de terem parecido infinitas, ainda não tinham sido suficientes para o sol romper pelas gretas da janela do quarto e vir um novo dia, mais uma vez. Na solidão daquele espaço, acompanhavam-me os fantasmas do predicado do meu pesadelo, que faziam de ti o sujeito subentendido na nossa história. Agora era tarde de mais. Para ti, para nós e para o tempo que não passou. (…) Os ruídos mentais deste assombro foram depois engolidos pela última badalada do relógio da igreja da minha rua. Agora, percebi que os fantasmas do passado se haviam dissipado. De seguida, veio o silêncio. Por fim, vi que estava só. 

quarta-feira, 20 de julho de 2011

cartas à chuva


Sozinha, ao fundo da sala, sentada à mesa de um restaurante qualquer, olho para a jarra de água com a flor de pétalas vermelhas, da mesma cor que o batom que tinha nos lábios. 
Ao recordar memórias gastas, deito a última lágrima da noite, como o último pedaço da minha sobremesa e dou o meu último soluço, enquanto limpo a boca, no guardanapo de papel.
Estou farta que me mintas!; farta que me trates como se fosse Rainha do Mundo!; farta que me exijas a Perfeição da Natureza e eu só te consiga dar uma pétala morta do chão.
Dá-me água, dá-me luz! Não a saliva das tuas mentiras, nem o teu sorriso artificial. Por tua causa, sequei e já nem tenho mais lágrimas para chorar. Desiludiste-me, mas… Sinceramente? Já estava à espera.
Pára de mentir! Para quê promessas de pétalas, tão leves e frágeis? que, quando se despegam da flor, voam para o regresso do nunca mais... Tal como a chuva, que começa no topo quando cai sobre as pétalas. Tu estavas lá em cima, também. Mas isso era dantes. Depois, as gotas vão caindo, escorrendo pelo caule, até ficarem por debaixo do chão. Sim, é aí que estás agora.

Antes eras a água que me alimentava e eu o ar que respiravas.
Agora, sou só um guardanapo usado e tu, uma marca de batom.

domingo, 10 de julho de 2011

copo sujo

atira esse prato de cristal branco sujo. parte-o em pedaços contra o chão, sem dó, utilizando a raiva que te percorre neste momento. não atires o copo!, senão abres a porta de vidro às almas condenadas. e não é justo.
olha para o reflexo embaciado nos pedaços do teu ser: os pedaços  es ti lha ça dos  do prato que partiste. e enquanto tentas incorporar esses teus fragmentos de alma fria na carne morna da raiva do teu corpo, em traços de sangue e linhas de cristal, desvia  len t a  m e nte  o olhar do pulso ferido e revê o copo que não partiste: as almas condensadas naquele objecto tão frágil... as almas que aprisionaste durante toda a tua vida. não tens medo, desse copo sujo?                                                                        
                                                                                                                                agora pára.
      o tempo de gritar já passou.

sábado, 9 de julho de 2011

escuro

acende uma vela com a resina do teu respirar. 
fala baixinho como se um bebé tivesse adormecido, sozinho, no escuro.
saca do isqueiro e GRITA com os teus instintos. 
acende, agora, os teus cabelos e faz a tua mente brilhar.
fios de fogo, fios de luz, e... não, não tenho medo. já não está escuro.
                       pois        a              lua
                                                                         descaiu          dois
                                                                                                                   centímetros
e já não consegue voltar ao lugar, porque a força da gravidade dos teus desejos é suja, como as palavras que dizes sem pensar.
e depois o vento  s o  p  r  a ,  revoltado com não-sei-quê, como uma inspiração sem lógica que não nos deixa adormecer... (não é que não goste do vento. só não gosto das suas encenações de fuga que depois enquadra em pretextos de cansaço geográfico. não gosto de mentiras.)
despe a tua capa de luz e queima a tua máscara de cera, que eu vou adormecer o pequenino que crava as unhas na minha pele para adormecer. não me importo.
fecha os olhos e adormece... tu que ainda não conheces o mundo, não tens razão para chorar. não, não chores desse sal que te corrói. eu canto-te a canção de embalar que a minha mãe me cantava antes de adormecer. (às vezes ainda a ouço, baixinho, no fim do corredor escuro, quando me levanto, a meio da noite, depois de ela me dar um beijo de boas-noites antes de se despedir de mim para sempre.)
agora, tira o elástico azul-petróleo do pulso cortado e ata o cabelo. não gosto de o ver solto e perdido, a voar... foi assim que a minha mãe morreu: 

suicídio. 
nono andar.

clichés familiares

Piadas secas, típicas de um jantar em família.
(...)
Eles riem 
e eu choro, por dentro. 
Eles falam
 e eu grito, em silêncio. 
Eles comem 
e eu devoro o meu interior. 

- Já não sou nada. Não tenho alma nem ser. Sou fumo do cigarro já morto que desfizeste no teu cinzeiro de vidro. O fumo já se desvaneceu no ar... E agora, de mim, já só restam cinzas.

Levanto-me da mesa, vou a correr para o quarto 
e bato a porta com força.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

gretas

g r e t a s. salpicos de sangue
alma derramada em mãos mergulhadas 
na secura gasta do tempo que não passou,
das memórias e da dor, que o vento não levou.
g r e t a s. lábios rasgados
das palavras abertas e dos sorrisos forçados, 
que se alimentam do frio e da gota que não cai,
da saliva que seca e da frase que não sai.
g r e t a s. pele escamada em escadas de escama; 
lençóis embrulhados e almofadas na cama, 
desfeitas pela chuva, nos cantos da boca.
pele livre e morta: solta.
g r e t a s. fio de carne viva, por mim feita: 
unha partida no polegar da mão direita. 
a camada de verniz negro fez um sulco ao puxá-la.
então, desvio o olhar para o papel e escrevo na sala, sobre as
g r e t a s  da minha pele, que cobrem o meu inferno
que me cortam e gelam, com as lâminas deste inverno.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

pena

Tenho tanta pena do chão, que todos os dias é pisado por nós; das palavras, usadas vezes e vezes sem conta; das peças de roupa, que andam às voltas na máquina, até ficarem sem cor; do verniz que seca, quando fica esquecido numa mala qualquer; e do amo-te vulgarizado, todos os dias, por densas almas sem forma.
         Tenho pena de mim. 
  Tenho pena de ti...  
                                                                                                                               por isso, 
vou-me calar para sempre e nunca mais abrirei a boca. Vou suicidar o meu pensamento circular na inconsciência suja e nunca mais abrirei a mente. Vou fugir, para lugar nenhum, e nunca mais abrirei as feridas, as feridas que nunca irão sarar.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

brancas

Odeio esquecer. 
Por vezes é o melhor, eu sei, mas nós somos feitos de matéria, de memórias e vento. Se não os temos, somos amnésicos de alma. Somos fumo. Somos nada, vento de sentimento oco. Às vezes entra por mim uma ideia, que depois se vai embora, sem deixar registo, para além de vazio. As chamadas  b r a n c a s . . . Irritam-me profundamente, fazem-me comichão no ego e dão-me voltas à barriga. É estar e fazer sem lembrar a razão, é sensação de perda e de limitação. Não quero esquecer, não quero... não quero... mas o tempo passa e apaga. Há coisas que quero que fiquem, mas vão, mesmo sem querer. Então escrevo, como que hipnotizada pelo relógio de bolso, ferrugento. Escrevo sem história, inconsciente, sem memória... Escrevo sem saber.